sábado, 17 de janeiro de 2009

ESCREVO O QUE NÃO SOU



**Rubem Alves Há uma pergunta que, quando feita a um poeta ou escritor, dói mais que picada de escorpião. A mim, pessoalmente, nunca fizeram. Mas fizeram a amigos meus. !Ele é do jeito mesmo como ele escreve?” É uma pergunta nascida do amor: acharam bonitas as coisas que escrevi e agora estão curiosos para saber se me pareço com o que escrevo. Como disse, nunca me fizeram a pergunta, diretamente. Mas eu respondo. “Não, eu não sou igual ao que escrevo”. Sou um fingidor. Quem disse isso, que o poeta é um fingidor, foi Fernando Pessoa: O poeta é um fingidor.Finge tão completamenteQue chega a fingir que é dorA dor que deveras sente. Fingir é palavra feia. Sugere uma mentira, com o intuito de enganar. No mundo de Fernando Pessoa ela tem um outro sentido. Fingimento é aquilo que faz o ator no teatro: para representar ele tem de “fingir” sentimentos que não são dele. E finge tão completamente que sente, realmente, uma dor que não é dele, mas de um personagem fictício, ausente. Assim é o poeta. Como pessoa comum, ele sofre. Essa pessoa sofredora não sabe escrever poemas. Ela só sabe sofrer. Mas nessa pessoa que sofre mora um outro, o poeta, o duplo, heterônimo. Esse poeta olha para si mesmo, sofredor, e “finge”: deixa-se possuir por aquela dor que é dele como se fosse de um outro: “chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”. Sou um fingidor. O que escrevo é melhor que eu. Finjo ser um outro. O texto é mais bonito que o escritor. Fernando Pessoa se espantava com isso. Ele tinha clara consciência de que ele era muito pequeno quando comparado com a sua obra. Num dos seus poemas ele diz o seguinte: Depois de escrever, leio... Por que escrevi isto? Onde fui buscar isto?De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu... Vinha-lhe então a suspeita de que aquilo que ele escrevia não era obra dele, mas de um outro: Seremos nós neste mundo apenas canetas com tintaCom que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos? Contaram-me que ele, Fernando Pessoa, certa vez, aceitou encontrar-se com Cecília Meireles, e marcaram lugar, data e hora para o dito encontro. Cecília compareceu e esperou. Pessoa não foi e mandou, no seu lugar, um menino com uma desculpa esfarrapada. Esse incidente sempre me intrigou. Será que Pessoa era um grosseiro indelicado? Depois, lendo o Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, encontrei uma curta afirmação que esclareceu tudo: “Nunca pude admirar um poeta que me foi possível ver.” Ao marcar o encontro com Cecília, movido pela delicadeza ou entusiasmo, ele se esqueceu disso. Foi só na hora que lembrou. Cecília amava os seus poemas. Na ausência, certamente, fizera aquilo que todos fazem: imaginou que o poeta se parecia com os seus poemas. Agora, em algum hotel de Lisboa, ela se preparava para se encontrar com a beleza dos poemas na sua forma viva, verbo feito carne. A decepção seria muito grande. “Nunca pude admirar um poeta que me foi possível ver” Assim, para poupar Cecília da decepção, ele preferiu não aparecer. Àqueles que fazem essa pergunta a meu respeito, que imaginam que eu possa ser parecido com o que escrevo, aconselho: “Não compareçam ao encontro. Fiquem com o texto.” Não é mentira, não é falsidade: a poesia é sempre assim. A poesia não é uma expressão do ser do poeta. A poesia é uma expressão do não-ser do poeta. O que escrevo não é o que tenho; é o que me falta. Escrevo porque tenho sede e não tenho água. Sou pote. A poesia é água. O pote é um pedaço de não-ser cercado de argila por todos os lados, menos um. O pote é útil porque ele é um vazio que se pode carregar. Nesse vazio que não mata a sede de ninguém pode-se colher, na fonte, a água que mata a sede. Poeta é pote. Poesia é água. Pote não se parece com água. Poeta não se parece com poesia. O pote contém a água. No corpo do poeta estão as nascentes da poesia. Escher, o desenhista mágico holandês, tem um desenho chamado Poça de Lama: numa estrada encharcada pela chuva um caminhão deixou as marcas dos seu pneus, onde a água barrenta se empossou. Coisas feia e sujas, as marcas dos pneus de um caminhão, cheias de água barrenta: nenhum turista seria tolo de fotografar uma delas, quando há tantas coisas coloridas para serem fotografadas. Pois Escher desenhou uma delas. E o que ele viu é motivo de espanto: na superfície de lama suja, refletidas, as copas dos pinheiros contra o céu azul. Pensei que a poesia é isso: poça de lama onde se reflete algo que ela mesma não contém. A copa dos pinheiros contra o céu azul não está dentro da lama, não é parte do ser da lama. Apenas reflexo: mora no seu não-ser. Pensei que assim é o poeta: poça de lama onde o céu se reflete. Nietzsche, escrevendo sobre a poesia de Ésquilo, diz que ela “é apenas uma imagem luminosa de nuvens e céu refletida no lago negro da tristeza”. E Fernando Pessoa, no poema daquele verso que todo mundo canta – Valeu a pena? Tudo vale a pena/ Se a alma não é pequena -, diz o seguinte: Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas nele é que espelhou o céu. É nessa contradição: o céu se fazendo visível, refletido, na poça de lama, no lago negro da tristeza, no perigo e no abismo do mar. Não. Não escrevo o que sou. Escrevo o que não sou. Sou pedra. Escrevo pássaro. Sou tristeza. Escrevo alegria. A poesia é sempre o reverso das coisas. Não se trata de mentira. É que nós somos corpos dilacerados – “Oh! Pedaço arrancado de mim!” O corpo é o lugar onde moram as coisas amadas que nos foram tomadas, presença de ausências, daí a saudade, que é quando o corpo não está onde está... O poeta escreve para invocar essa coisa ausente. Toda poesia é um

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