
Empertigada e séria, Marieta, sentada no banco do jardim, permanecia ali todas as tardes, sobraçando com dignidade seu volume encadernado de verde-escuro, óculos sobre o nariz, no braço fino a bolsa de couro marrom, que apesar de muito usada ainda conservava o brilho delicado, sempre conseguido com a graxa de sapatos.
Vestia traje clássico, que jamais entra em desuso principalmente para as pessoas de certa idade.
Aposentara-se aos 60 anos, depois de trabalhar por quase 40 anos nos escritórios da estrada de ferro.
Apesar de em desuso e as linhas de trem haverem quase todas acabado com o advento das estradas de rodagem, mais rápido e mais eficiente meio de transporte, a companhia, que mudara de nome algumas vezes, a tinha conservado no posto.
Havia até quem dissesse que D. Marieta representava a própria era da ferrovia, tendo nascido ao seu apogeu e se mantido apesar da decadência.
Funcionária exemplar, durante tantos anos, quase nunca faltara ao serviço ou chegara fora do horário. As outras que não conseguiam seguir-lhe o exemplo, diziam com raiva:
- Ela pode, porque é solteira. Nada tem que a preocupe, nem que a impeça de chegar no horário.
Ao que Marieta sempre respondia:
- É desculpa de quem não quer esforçar-se. Também tenho minhas obrigações.
E de fato as tinha. Seus dois irmãos se tinham casado e ela ficara com os pais, cuidara deles com desvelado carinho, até a hora em que eles morreram. Primeiro a mãe, vítima de insidiosa moléstia, depois de 6 anos o pai, de pneumonia dupla.
Marieta ficou só. Os irmãos se tinham mudado para São Paulo em busca de melhores condições de trabalho, o que não era fácil naquela cidade do interior.
Marieta sentia o peso da solidão, a ausência de afeto, a frustração de seus sonhos de mulher não realizados.
Mas a vida na cidade mantinha seu ritmo e ela continuava a exercer suas funções no emprego religiosamente e cuidando da casa, agora solitária e silenciosa.
Não se mudou. Para que o faria? Seu mundo de lembranças estava lá. Sua infância, os ruídos dos seus pais nas costumeiras conversas ao pé do fogão, onde a lenha crepitava e a chaleira fervia continuamente. As discussões com os irmãos, os aniversários sempre comemorados com chocolate quente, mesmo no verão, e o bolo de maisena, sanduíche de mortadela cortada fininha, da venda do seu Nicolau. O namoro dos irmãos, as formaturas, seus sonhos nunca realizados.
Por que não tinha se casado? Ela bem o quisera, mas além de alguns flertes banais, nada mais acontecera em sua vida. Nem um amor vitorioso ou uma emoção maior. O que fazer?
Até que tinha se apaixonado por duas vezes, a primeira aos 18 anos por aquele belo caixeiro viajante que todos os meses comparecia à companhia para vender papel e artigos de escritório.
Mas ele desapareceu sem sequer interessar-se por ela, que chorou muito vendo seu galã substituído por gorducho e simpático companheiro, pai de numerosa prole que ele mostrava sempre a quem quisesse ver, tirando da carteira um retrato completo, onde sequer faltavam os sogros e estavam seus seis filhos.
Nunca mais ouviu falar no seu antecessor, e outra aconteceu-lhe aos 40 anos, para provar que idade não trava o coração.
Alto, forte, simpático, solteirão inveterado, o Boanerges ocupou os pensamentos cândidos de Marieta que em seus arroubos amorosos jamais ia além de um beijo roubado a medo, um roçar de mãos ao acaso, ou um olhar mais intencional.
Quando o encontrava na praça sentado a ler o jornal, depois que saía da repartição onde trabalhava, tremiam-lhe as pernas e o coração saltava-lhe no peito, como a sair pela boca.
Boanerges tinha o gosto pela natureza. Seu prazer era ver o entardecer em meio às árvores, ouvindo o gorjear dos pássaros e o chilrear alegre de algumas crianças pulando amarelinha.
Suspirava fundo, bebia gostosamente a paisagem bucólica que o circundava e depois, feliz, realizado, à vontade, tirava do bolso do paletó o jornal cuidadosamente dobrado e dispunha-se à leitura.
Só quando a escuridão dificultava a visão é que ele repunha o jornal no bolso e respirando gostosamente tomava o caminho de casa.
Às vezes, embebia-se tanto na contemplação e no prazer de viver aquele instante que saía deixando o jornal esquecido no banco.
Foi por causa dele que Marieta começou a gostar da praça. Ela também deixava o emprego às 4 e meia. Por que ir para a casa tão cedo? Porque trancar-se no seu solitário mundo de recordações?
Não gostava de ler jornais, preferia as poesias, os romances. mesmo assim, lia pouco. Não era um entretenimento que a atraísse.
Contudo, lá estava o Boanerges, tão feliz, tão realizado. A princípio ela tentava escolher livros para ler na praça todas as tardes, na volta do emprego. Sentava-se a um banco, ao lado do banco do seu apaixonado e, como saía mais cedo que ele, quando ele chegava, ela já lá estava, digna, ereta, lendo. Ele, vendo-a, cumprimentava-a levando a mão ao chapéu e ali permanecia, silencioso e feliz.
A cena repetia-se todas as tardes e Marieta passava aquelas horas, livro aberto nas mãos, e observando o vizinho disfarçadamente.
Com o tempo, ela até se esqueceu de mudar o livro, já que não a interessava a leitura. Ficava ali, sentindo o coração bater forte e gostoso calor a invadir-lhe o corpo.
Algumas vezes conversavam, coisas banais tais como: "O dia está lindo" , "O céu está azul" ,
"As flores estão cheirosas". Nunca nenhum assunto pessoal ou mais íntimo.
Marieta sentia-se bem com a proximidade dele e naturalmente, levantava-se antes que ele se decidisse a ir embora, para recolher-se à sua casa solitária.
No verão um pouco mais tarde, no inverno, como escurecia mais cedo, retirava-se um pouco antes. Não ficava bem, pensava ela, deixá-lo ir-se primeiro e era tão pontual nessa atitude que aos poucos ele se foi habituando a esperar que ela se fosse para ir-se por sua vez depois de cinco a dez minutos.
Até que um dia o Boanerges não apareceu e Marieta preocupou-se muito. Telefonou para a repartição onde sabia que ele trabalhava e descobriu que ele estava afastado por motivo de saúde.
Teve vontade de ir visitá-lo, porém não ousou. Por certo não ficava bem. Ele vivia sozinho.
Durante vários duas esperou ansiosa e nada de Boanerges. Marieta olhava o banco ao lado do seu e rezava para que ele recuperasse a saúde.
Até que uma tarde, ao passar pela praça ele estava lá. Tinha chegado antes dela. Estava magro, os cabelos tinham embranquecido mais, o rosto abatido; jornal no bolso do paletó, ele olhava o céu e respirava o ar puro com prazer.
Marieta, livro em baixo do braço, parou e olhou-o emocionada. Ele tirou o chapéu, sorriu e ela sentiu-se feliz.
- O senhor não tem vindo, - disse com ar sério.
- Estive doente. Por causa disso aposentei-me. Não trabalho mais.
Marieta sentiu um baque no coração.
- Quer dizer que não virá mais à praça?
- Virei sim. Ao contrário. Agora tenho tempo para estar aqui sempre que quiser.
Marieta sorriu tranquila, abriu o livro e mergulhou o rosto nele, embora seus olhos não lessem nada do que estava escrito ali.
E de fato, as coisas se modificaram. Quando Marieta chegava, o Boanerges já estava lá e ela depois de cumprimentá-lo sentava-se e reabria seu livro religiosamente.
Quando se aposentou, Marieta cumprimentou-o mais corada do que de costume e disse-lhe comovida:
- Hoje foi meu último dia de trabalho. Aposentei-me.
Ele remexeu-se no banco:
- Não virá mais à praça?
- Nem pense nisso, - disse com ardor, depois, corada completou: É tão linda! Estou tão habituada a vir aqui! Agora terei mais tempo para isso.
Ele sorriu calmo, abriu o jornal e continuou a leitura.
Uma tarde ele olhou-a e disse emocionado:
- Estou doente. O médico queria que eu mudasse de ares.
Marieta olhou-o aflita. de fato o Boanerges estava magro e abatido.
- O senhor vai viajar?
- Não. Não vou. Se me curasse, eu iria, mas não tenho essa esperança.
Marieta olhou-o penalizada. Pela primeira vez, atreveu-se e levantando-se, sentou-se no mesmo banco que ele.
- O senhor está triste, - disse comovida.
- Estou. Esta doença não me deixa.
- E sua família?
- Sou sozinho. Não tenho ninguém. A senhora tem família?
- Não. Meus pais morreram há muitos anos, meus dois irmãos moram na capital.
A partir desse dia os dois sentavam-se no mesmo banco e ora conversavam ora permaneciam em silêncio, ela fingindo ler, ele contemplando a natureza. Aos poucos descobriram que gostavam das mesmas coisas, tinham as mesmas idéias e muitos pensamentos em comum.
Até que um dia, ele não apareceu na praça, nem no outro nem no outro. Desesperada, Marieta decidiu-se. Aprontou-se e foi ter à casa dele. E o que temia aconteceu. O Boanerges estava pior.
Estendido no leito, rosto pálido, ele estava mal.
A empregada recebeu Marieta e levou-a ao lado dele que vendo-a tentou sorrir.
- Senhor Boanerges, estranhei sua ausência e bem desconfiei da sua saúde.
- Dona Marieta, - disse ele com alguma dificuldade, - eu estou mal.
- Deus é grande. O senhor vai ficar bem.
Diariamente Marieta visitava o enfermo mas ele não ficou bom. Uma tarde, entre um achaque e outro, num momento de calma, o Boanerges tomou a mão delicada de Marieta dizendo comovido:
- Sei que meus dias estão contados. Não quero morrer sem fazer-lhe uma confissão.
- Fale, senhor Boanerges.
- Nós nos conhecemos há muitos anos.
- É verdade. Pra mais de 20.
- Eu devo dizer que sempre a amei, Marieta. Eu sempre a amei.
- Boanerges!
- Não diga nada. Não me critique, por favor! Compreenda! Eu já tinha mais de 40 anos quando a vi passar e me apaixonei.
Marieta tremia qual folha batida pelo vento.
- Não se ria por favor!
- Não estou rindo. Por que nunca me disse? Por que deixou que nossa vida se fosse sem nunca me dizer nada?
A voz de Marieta era dorida e havia revolta em seu tom.
- Eu estava velho demais, - disse ele com voz cansada, - tive vergonha.
- Vergonha?,- disse ela no auge do desespero.- Por quê? Eu sou livre. Você também.
- A idade... tive medo que você risse de mim, me desprezasse.
Ela olhou-o, triste.
- Eu? Eu que estremecia quando você passava? Que sonhava com você todas as horas, esperando que essa declaração acontecesse?
Lágrimas corriam dos olhos dela sobre as mãos deles apertando-se em desespero.
- Quanto tempo perdido!,- disse ele com amargura.
- Sim. Quantas horas de solidão e de angústia! Nós podíamos ter vivido muitos anos de felicidade.
- E a nossa idade?
- Nossos corações não têm idade.
- Você tem razão. Estou arrependido. Agora é tarde.
- Nunca é tarde. Ficarei a seu lado o mais possível. Cuidarei da sua saúde. Um dia construiremos nossa felicidade.
Mas apesar da dedicação de Marieta o Boanerges partiu, tendo demonstrado o mais puro amor.
Sentada na praça enquanto a tarde cai, Marieta conserva ainda entre as mãos o mesmo livro aberto que não lê.
Olha o banco vazio, e em pensamento vê o Boanerges ali, jornal às mãos, lendo ou meditando. Marieta pensa no tempo que poderia ter vivido com ele e não viveu.
Por que duas pessoas sozinhas que se amavam tanto, não tinham conseguido ser felizes? Pela milésima vez essa pergunta queimava-lhe o cérebro, e a resposta era sempre a mesma.
Preconceito. Puro preconceito. Só preconceito. Dele para com a idade física, dela para com o conceito que limita a ação da mulher colocando-a como passiva no jogo amoroso.
Por que não lhe demonstrara o amor que lhe ia no coração?
Orgulho, só orgulho. E ele, por que temera o ridículo de uma paixão depois dos 40 anos? Orgulho, só orgulho.
Marieta olhou o banco vazio e pensou:
- Se fosse hoje, tudo seria diferente.
Mas o tempo tinha passado e ela continuava sozinha.
Um dia, ela estava lá, no banco da praça e de repente quando olhou surpreendeu-se: O Boanerges estava lá, como da primeira vez que o vira. Forte, bonito, no bolso do seu paletó o mesmo jornal cuidadosamente dobrado. Mas, ele não lia, nem olhava o céu, as flores e a natureza, olhava para ela e sorria.
Ela levantou-se assustada:
- Boanerges! – disse admirada.
- Vem comigo Marieta. Vamos ser felizes!
Ela não titubeou, caminhou para ele e abraçou-o com amor. Suas pernas tremiam de emoção e seu coração batia tanto que parecia querer sair-lhe pela boca. Abraçou-o comovida e juntos, abraçados, seguiram tão entretidos e felizes que ela sequer percebeu que seu corpo ficara estendido frente ao banco onde tantas vezes tinha sonhado com a felicidade.
Sua bolsa marrom jazia no chão semi-aberta e seu velho livro de capa verde, rasgara-se na queda, tendo suas páginas levadas pelo vento que soprava forte.
Vozes de populares gritavam assustadas:
- Socorro, e velhinha desmaiou.
- Está morta – disse outro. – Pobre D. Marieta. Ela sentava-se sempre aí. Durante anos, eu a vi todas as tardes!
Estavam todos tão preocupados em socorrer-lhe o corpo e ninguém percebeu os dois vultos abraçados que, felizes, deixaram a bela praça rumo ao infinito...
zibia gasparetto - pedaços do cotidiano -